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Entrevista com a autora do Orélio Cearense, Andréa Saraiva
 

 

- Como a senhora está vendo toda essa vibração, essa empolgação com o nosso cearensês?

 

Precisa que se diga que essa empolgação e vibração não são súbitas. Antes, como historiadora, acredito em processos constituidos por uma conjunção de fatores.

 

O cordel, por exemplo, resiste até hoje.

 

No contexto que foi lançada a primeira edição do Orélio, há mais de 10 anos, já existia esse bem querer e essa vibração com o nosso linguajar. Tanto que, se nao me engano, existem 4 ou 5 dicionários de Cearês que causaram furor à época. O Orélio se tornou um xodó tanto que republiquei por pura pressão das pessoas.

 

Se pudéssemos perscrutar os motivos para esse boom, arrisco a dizer que nunca é só um motivo mas uma conjunção de fatores que corria à margem e vindas das mais diversas expressões e linguagens artisticas. No teatro, na literatura, na música, no humor, pelas mídias sociais e agora de forma mais intensa, pelas mãos do audiovisual.

 

A cultura é o DNA de um povo. Creio que, aos poucos, a cultura popular foi se desescondendo. Aquela nascida dos becos, ruas, bares, calçadas e lares e que ficam à margem das políticas públicas de culturas e seus engessado editais, a que estava invisível e agora se consolida de maneira até espontânea, natural, posto que há estofo, não é algo fabricado. Tenho a impressão que o cearês e a cultura popular sairam do armário.

 

Essa valorização do nosso linguajar não se sabe de onde, portanto, surgiu....só se sabe que sua insurgência foi pela arte, cultura e que existia e existe uma latência e potencialidade danada do povo cearense de valorizar sua cultura. Então foi a sede com a vontade de beber água.

 

- Essa visisbilidade toda tem gerado um aumento da auto-estima do cearense?

 

Fico invocada com essa história de nossa “identidade”, de autoestima de um povo... é difícil chegar num consenso quando se trata de uma matéria tão subjetiva e ainda tão pouco estudada. Imagino que o povo teria mais estima se fosse respeitado seus direitos mais básicos. Isso é o verdadeiro viagra que faria subir qualquer autoestima.

 

Não sei o que diria um analista se nosso estado fosse colocado num divã. Um povo que vaia o sol e elege um bode como ícone (seria um alterego?) não pode ser muito normal da cachola.

 

No entanto, pra mim, um povo que ri de si (e principalmente dos outros) deve estar bem resolvido. Há esse despojamento, irrefutável e até desconcertante.

 

Outro aspecto que é de salutar importância é o risco de incorrer no bairrismo ou cearensismo romântico ou até mesmo servir para manipulação de gestores mal intencionados. Há que se busque uma justa medida mas fico um tanto aliviada por entender que esta é regulada pelo próprio povo.

 

No entanto, há que se entenda a necessidade de valorizar o que é nosso, o que nos torna peculiar. Acho essa busca propositiva, mas não arriscaria a dizer o que somos, o que nos identifica de forma mais contudente, definitiva e homogeinizante.

O linguajar coloquial sendo exposto é como se estivéssemos todos tomando um cafezinho com tapioca na cozinha do Ceará. Isso dá uma cumplicidade danada no povo. Emerge, então, um sentimento de pertencimento. Um aconchego coletivo.

 

No Orélio tive a preocupação em registrar palavras em desuso, me esquivei de gírias. Esse registro serve para os mais idosos lerem o livro como um álbum de palavras. Uma fotografia de um dado momento. E para os mais novos, conhecer e reconhecer o nosso palavreado.

 

As palavras também são vestígios que nos ajudam a compor desde uma data aproximada de determinadas expressões ou até mesmo a idade de uma pessoa que usa alguns termos. Vou citar um: se uma pessoa fala que fulano “é um pão”, logo a gente vai saber que seguramente ela tem mais de 30 anos (risos). Mas tirando a brincadeira séria, as palavras tem ideologia, alma, história e sua análise mais rebuscada e profunda pode nos dar indícios até sobre nossa formação patriarcal ou classe social, por exemplo.

 

E Sob esse ponto de vista, creio que a visibilidade do Cearês seja positiva para despertar o interesse na nossa história, nas nossas raízes, na nossa cultura. Sem o quê seremos presas fáceis na tentativa dos governantes de nos massificar e nos “maiamizar” ou ainda, corremos o risco de sermos engolidos pela tal globalização.

 

Arrisco a dizer que a afirmação de nossa linguagem é uma forma de resistência. Isso, certamente e independente do diagnóstico do suposto divã, contribui bastante para nossa cultura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

- Qual a formação da nossa linguagem? Que influências sofreu? Quais são nossas raízes?

 

A insurgência desse tipo de curiosidade já é fator a ser comemorado. Infelizmente se investe pouco nesse campo de pesquisa que é vasta e necessária.

 

Cabe a consideração ante esse afã de que a história do Ceará e a maneira como ela é contada (com raras exceções), a torna uma ilustre desconhecida para maioria dos cearenses. Se desconhecemos nossa história como podemos ter esse tão sonhado pertencimento? Aliaś, como ter sentimento de pertencimento ou afeto por algo de que se desconhece?

 

Existem vários estudos – e até fico feliz que o Orélio tenha servido de dados para algumas pesquisas- que buscam entender quais são os aspectos fundantes do nosso linguajar, mas ainda assim, não há uma resposta direta para essa pergunta.

 

O que é mais ou menos aceito é de que o Cearês tem influência árabe, criola, inglesa, africana, indígena, portuguesa (muitas advindas do portugûes classico) e que sofrem fusão, corruptelas e se 'ciarensiza' por assim dizer.

 

Outras são simplesmente neologismos criados muitas vezes por falta de repertório no vocabulário do mesmo mesmo português que se espalham e que dá um trabalho danado pros filólogos descobrirem suas origens.

 

No meu trabalho como historiadora, procurei registrar palavras em desusos e evitei ao máximo reforçar estigmas de um português mal falado. Mas não tive intenção de investigar suas origens, deixo pro linguistas e filólogos que poderão fazer essa pesquisa com bem mais propriedade.

 

Sobre nossas raízes, também me ressinto de haver poucos estudos e pesquisas nesse campo. Mas qualquer pesquisa séria irá se deparar com as evidência da preponderância indígena na nossa formação 'genética'. Indícios são vários. É só ver os nomes das cidades e bairros do nosso estado. É observar nossa culinária, nossa hospitalidade e queda pelo jocoso.

 

O que é inconteste no campo paradigmático da história é que, assim como no restante do pais, já existiam milhoes de nativos, antes dos europeus nos invadirem e nos tomarem como seus. Tais nativos hoje denominados de indígenas foram dizimados, aculturados e usados como escravos. Hoje, pelo processo violento de dizimação temos apenas cerca de 20 mil destes povos indígenas que ainda resistem ante o culturicídio a que foram submetidos.

 

Pela peculiaridade de nossa formação colonial nos diferenciamos de boa parte do nordeste uma vez que nossa economia não era baseada na monocultura da cana-de-açúcar pois nossa terra era tida como imprópria para o cultivo, o que nos dá uma pista de que não tivemos “estrangeiros” suficientes para formar uma etnia. E por essa caracteristica, usou-se pouco da mão de obra escrava para lavoura. Por isso, a influência africana embora marcante, não teve correspondência numérica.

 

O povo africano veio em menor quantidade do que na maioria dos outros estados, embora hajam fartos vestígios da presença destes em regiões do estado onde havia condições climáticas para a agricultura, sua grande massa, de um modo geral, foi escravizada para trabalhos domésticos.

 

Daí é uma impropriedade histórica afirmar que no Ceará não houve e não há negros. Há e houve mas sempre foram invisíveis. Hoje estes estão à margem, em favelas e são as vítimas em potencial da violência do estado. Como se diz, o 'camburão' é o novo navio negreiro.

 

O que se quer pontuar, no entanto, é que somos constituídos eminentemente pelos indígenas, povos originários. Ainda que queiramos – intencionalmente ou não – negar esse fato.

 

Outra caracteristica nossa e marca uma história mais recente e que pode apontar para uma leitura do que seja nossas origens ou influências, foi a formação econômica baseada na pecuária, onde houve uma intensa troca advindas da comercialização de gado com o resto do país. Tais trocas se deram também e influenciaram pelo mar, vinda dos pescadores de diversos pontos do país.

 

Essa troca, de dificil mensuração do grau de influência, nos dá pistas para entender essa punjança de expressões idiomáticas tão diferenciadas, ainda que existam vários pontos de convergências.

 

- Temos um só cearensês ou vários? Nossa fala muda de acordo com região?

 

Não se pode falar em cultura cearense, mas em culturas. Certamente no Ceará há uma

diversidade de expressoes culturais. Até o staque muda. Como muda também não só o 'dialeto/palavreado' como o significado delas.

 

O neologismo ou mesmo as distorçõres ocasionadas pela forte característícas da oralidade torna o cearês ao mesmo tempo uno e diverso na nossa cultura . Processo absolutamente natural. Daí nosso refreio ao se tentar buscar “uma identidade”, uma homogeinização de nossas manifestações como 'homus cearensis'.

 

Se formos para o sul do Ceará, por exemplo, o sotaque é totalmente outro. A fonética guarda muito mais semelhança com nossos irmãos pernambucanos do que mesmo com o da maioria falada no Ceará.

 

Se observarmos bem, até em Fortaleza há diferenciações dos sotaques, das expressões idiomáticas que variam de bairro para bairro. Imagina num estado onde temos sertão, praia e mar e uma ruma de influência trazidas pelo processo de constituição de nossa história!

 

- Qual a principal caracteristica da nossa linguagem? O que é mais marcante?

Tive uma trabalho danado para colocar o significado das palavras, isso por que uma das maiores caracteristicas do Cearês, que observei, é que só se pode entender um verbete pelo contexto. “Botar boneco” por exemplo, vai depender e muito da entonação e do contexto a que está submetido. O Cearês é mais conotativo do que denotativo. Imagina tentar traduzir isso em palavras...

 

Tentei, pois, resolver essa questão criando um romance onde optei por constituir uma ambiência para entendimento do palavreado. Tentei, também, citar exemplos dentro das definições hiperlinkando com o referido romance que permeia o livro, pois se desse apenas o significado, somente os cearenses entenderiam o código.

 

De nada adiantaria, portanto, já que a intenção do cearense é dominar o mundo e para se dominar o mundo tem que se dominar a cultura, que o Orélio, o Cine Holyúde, o Suricate Seboso, o cordel sejam essa enciclopédia, esse instrumento para darmos corda pra essa empreitada.

 

*Entrevista concedida originalmente à jornalista Ivna Girão do Diário do Nordeste

 

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